Amo meu bairro moro aqui há dez anos (PENHA-ZL-SP) e ficarei por aqui e até o dia que a morte me rapte para minha verdadeira pátria.
Desde que cheguei aqui frequento o mesmo sapateiro, ele renova meus sapatos, coloca novos brilhos e no final eles ficam resignificados. O nome dele é João deve ter quase 60 anos, casado e com alguns filhos. Frequento sua sapataria a pelos menos dez anos.
Em 2009 ele me confessou enquanto consertava meu sapato:
- Meu sonho sempre foi ser professor Marlon, disse João um tanto quanto emocionado.
-Porque João?- Perguntei.
-Porque é a profissão mais bonita para um homem, respondeu João.
Guardei em minha emoção suas palavras em seguida fui embora desejoso que um exército de anjos tornasse seu sonho realidade, porque como escrevi em meu livro O GOSTO DO SEXO SEM ROSTO-Diário secreto de um garoto de programa A MORTE DE UM SONHO É MAIS TRISTE DO QUE AMORTE DE UM HOMEM.
Em 2011 voltei lá e ele me disse todo feliz que estava fazendo uma faculdade para se tornar professor, ele falava e falava das delicias de ser professor e achava cegamente que seu oficio consertaria o mundo. Apesar de todos os meus defeitos, eu consigo ficar feliz com a alegria alheia e isso me absolve do meu desamor diante do outro muitas vezes.
No final de 2012 eu retornei a sapataria e ele me disse que havia parado o curso, pois não tinha condições de continuar por falta de dinheiro, o que ganhava consertando sapatos mal dava para alimentar sua família, disse ele.
Ao ouvir isso experimentei uma fraqueza sagrada e sangrada, um medo muito grande de um dia não poder mais escrever. Seu sonho havia virado sua miséria anônima.
Tentei dizer para ele tentar uma faculdade e conseguir bolsa de estudos através de projetos sociais, mas ele me disse que tentou e não conseguiu pontua o mínimo possível.
Eu fiquei visivelmente triste, porque no Brasil quando tempos um sonho ninguém nos ajuda a conquista-lo e sozinho o caminho mais fácil é desistir. Eu fiquei deprimido e mudo por alguns estantes e ali a minha impotência estava denunciada. Porque nem Deus, nem você, nem eu somos tão humanos a ponto de construir um pódio para o perdedor. Seu amor pelos sapatos velhos o torna alquimista das inutilidades, isso me deixa desconcertado, porque o meu maior medo hoje é amar apenas o que é útil, eu não quero eu não posso.
Ele percebeu a minha tristeza e tentou me consolar dizendo:
-Eu gosto muito de consertar sapatos, faço isso desde criança , aprendi com papai e nunca mais parei, tem pessoas Marlon que ao ter o sapato restaurado tem de volta a alegria de viver, existe sapatos que são mais que sapatos, disse ele com um sorriso cheio de esperança. Prontamente me lembrei do poeta Rubem Alves que dizia: tem coisas que são mais que coisas .Fui embora anulado como pessoa incomum e capaz. Eu queria mesmo vomitar em Deus a minha fúria diante dele, diante da vida, diante de você, mas o que poderia eu diante de um Deus tão poderoso e inexorável?
Esta semana voltei lá e levei dois sapatos para ele devolver-lhes a vida roubada pelo chão ingrato de São Paulo, conversamos mais um pouco, mas ele nem tocou no assunto da faculdade, enquanto consertava me dizia dos prazeres de devolver a vida a sapatos mortos, com uma linguagem bem simples ele me fez refletir sobre a nossa obrigação de consertar um mundo.
O mundo falhou para João, mas João não falhou para o mundo, existe uma poesia indizível nesse conceito que se esbarra na mística do amor, amor pelo mundo, amor pelos sapatos velhos, amor pela humanidade.
A parte triste da historia é que o Brasil é o pais do futebol, do carnaval e da desigualdade social, jamais seremos o pais das oportunidades.
Mas a parte boa é que andei pensando que podemos começar a consertar o mundo a partir do que ainda não somos.
Um passado triste, um presente doente e um futuro morto tudo isso costurado no tecido humano chamado João.
A gente começa a consertar o mundo cumprimentando o porteiro do nosso prédio, dando um lanche para um mendigo sem que ele precise justificar o motivo de ser um adicto, a gente conserta o mundo quando arrancamos as grades do coração e nos permitimos ser amigos e sentar na mesma mesa das putas, mendigos, travestis, sapateiros e tantos outros que nossa arrogância coletiva nos faz desprezar, porque esquecemos que nós somos o outro. A gente conserta o mundo quando deixamos de postar selfies e mais selfies, ostentando sem perceber a nossa incapacidade de lidar com uma autoestima esmagada e com nossa falta de capacidade de oferecer caridade a nós mesmos. A gente conserta o mundo quando controlamos nossa vontade diabólica de fazer fofocas da vida alheia e espalhar esse mal no mundo, a gente conserta o mundo quando nos aproximamos de algum em uma balada, site ou rua e de cara não vamos logo perguntando qual sua profissão, a gente começa a consertar o mundo quando pelo menos uma vez por semana tiramos cinco minutos para derramar luz no sonho alheio, à gente começa a consertar o mundo quando invés de postar picas, cu bucetas e uma vida ‘’luxuosa’’ postamos uma poesia. A gente começa a consertar o mundo quando dividimos o guarda chuva com alguém. A gente começa a consertar o mundo quando ficamos menos tempo em academias de musculação e mais tempo entre livros. Quando aprendermos a consertar a nos mesmo as centenas de compartilhamentos, comentários e curtidas nas redes sociais não faram mais o menor sentido, você topa começar agora?
Pelé, Ronaldinho, Neymar, abandonam filhos em fase terminal em hospitais, transam com travestis e abandonam em qualquer esquina da vida ou da alma como se fossem sapatos velhos e ainda declaram que futebol deve ser prioridade e não hospitais, e mesmo assim pedimos autógrafos a eles, a culpa é nossa porque no dia que começarmos a pedir autógrafos aos professores o nosso purgatório pessoal fica menor.
No texto Eu tomo conta do mundo Clarice Lispector nos convida a fazer isso também, mas passado quase quarenta anos de sua morte ninguém esta disposto a cuidar do mundo.
João queria ser professor, acho que não será porque trancou seu sonho na gaveta do esquecimento e perdeu as chaves. Isso é muito triste, mas a boa nova é que ele continua cumprindo seu oficio de consertar um mundo consertando sapatos.
João aumentou meu amor pelo mundo e isso inclui amar mais ainda meus sapatos, tentarei salva-los da morte sempre que possível, e quando não for mais eles jamais entraram no mundo do esquecimento, eu o promoverei ao mundo dos significados.
Dedico esse texto a todos os sapateiros do mundo porque eles assim como João nos convida de forma simbólica a consertar o mundo quando passamos a não olhar mais para estrada para prestar a atenção no formato dos nossos próprios pés.
Essa historia ainda não acabou dentro de mim, mas eu quero que acabe, não, não eu não quero que acabe. Vou tomar um copo de agua para rega-la dentro de mim, talvez nasça uma flor ou um espinho, mas eu te aviso companheiro, eu te aviso sim.
João somos todos nós, inundados de ausências, descontinuidades e uma esperança difícil, mas chama-se esperança!
Marlon