Queridos leitores e amigos da Mundo Escrito, este post abre uma nova série de entrevistas – a série “Dicas de escritores famosos para quem quer ser escritor”.
Sentimo-nos muito animados e honrados ao abrir esta série entrevistando Fabio Shiva, que é músico, escritor e produtor cultural.
A carreira musical de Fabio Shiva foi iniciada com a banda “Imago Mortis”, com dois CDs lançados internacionalmente. Fábio Shiva é coautor e roteirista de “ANUNNAKI – Mensageiros do Vento”, ópera rock em desenho animado lançada em 2016 com grande repercussão. É fundador da “Oficina de Muita Música!”, projeto inovador que já beneficiou centenas de participantes com aulas gratuitas de violão, onde todos são alunos e professores de todos, na Casa da Música (SECULT/BA). É facilitador também da oficina de Meditação para Crianças. Idealizador e produtor dos projetos Pé de Poesia (2016) e Doce Poesia Doce (2017), ambos pela Fundação Gregório de Mattos (PMS).
Fabio Shiva também participou de diversas coletâneas de poesias, contos e crônicas. Publicou em 2013 o romance policial “O Sincronicídio” pela Caligo Editora. Sua história infantil “A Menininha Azul” foi selecionada para a plataforma digital do Mapa da Palavra – BA. Em 2016 lançou dois livros pela Cogito Editora, um duplo de contos (“Isso Tudo É Muito Raro / Labirinto Circular”) e, como organizador, o coletivo sobre literatura “Escritores Perguntam, Escritores Respondem”. Indicado ao Prêmio Caymmi 2017 na categoria “Melhor Roteiro de Videoclipe”. Em 2018 lança, como organizador, a antologia poética “Doce Poesia Doce”, pela Cogito Editora.
Fabio Shiva responde às nossas perguntas sempre com muita maturidade e consciência. Então, vamos à entrevista!
– INÍCIO DA ENTREVISTA –
MUNDO ESCRITO (ME): No momento da produção textual, quem escreve deve se desligar da revisão (de coerência, ritmo, estrutura gramatical etc.) para soltar a criatividade? Ou esta depende de uma estrutura sólida, construída passo a passo?
FABIO SHIVA: Penso que isso depende do processo de cada um. Eu geralmente dedico um tempo para visualizar mentalmente antes de começar a escrever. Por isso quando sento para escrever já tenho uma noção do que acontece a seguir, e boa parte de meu esforço é justamente para contar de forma interessante, bem estruturada, o que já visualizei na imaginação. Comigo não funcionaria essa estratégia de sair escrevendo para deixar a criatividade fluir, sem atentar para a qualidade do texto. Porque uma frase mal formulada me incomoda profundamente. Fico travado com algo que considero tosco, mal escrito, e só consigo prosseguir quando reescrevo de uma forma que deixe de me incomodar. Essa foi uma das primeiras – e mais preciosas – descobertas que fiz como escritor: talvez eu não saiba dizer quando um texto está bem escrito, mas certamente sei quando está ruim. Então tento usar isso a meu favor, e sigo reescrevendo até que o texto deixe de me incomodar.
ME: Além de ler criticamente, o que mais pode ajudar no processo da escrita?
FABIO SHIVA: Ler é fundamental, mas viver é ainda mais importante. Por viver considero experimentar de fato a vida, ser afetado por circunstâncias boas e más, vivenciar emoções intensas, refletir sobre o grande mistério que há por trás das coisas mais insignificantes, observar e aprender com os dramas, tragédias e comédias de cada pequena situação cotidiana. À primeira vista pode parecer meio bobo recomendar algo assim, mas acredito que a maioria das pessoas não vive de verdade, mas apenas passa pela vida em um estado semelhante ao sonambulismo. E escrever é justamente o esforço de desvendar, a busca por um sentido oculto e muitas vezes inexprimível. Escrever é uma tentativa de despertar.
Não estou de forma alguma desmerecendo a importância da leitura. Ler criticamente é ler como um aprendiz de feiticeiro, querendo descobrir como a mágica é feita. Essa é uma das melhores maneiras de absorver a técnica da narrativa. Mas você precisa ter algo de interessante para contar, algo de precioso que possa ser beneficiado pela técnica. Porque a técnica por si só é vazia, se não houver sangue e vida no que você se propõe a contar. Acho que os escritores mais interessantes, os que deixaram as obras mais significativas, foram os que mais se dedicaram a viver plenamente, os que de fato procuraram conhecer a si mesmos.
ME: Como identificar o gênero mais adequado?
FABIO SHIVA: Experimentando a si mesmo em todos os gêneros e, sobretudo, buscando ouvir sua voz interior. Vargas Llosa diz que os temas é que escolhem o escritor. Eu acredito muito nisso. Escrever é meio como ser assombrado por histórias que não lhe deixam em paz até que você as coloque no papel. Nesse sentido, o gênero mais adequado será o que melhor lhe permitir aplacar esses fantasmas e apaziguar as vozes em sua cabeça. Por outro lado, escrever também é se aventurar, é brincar de Deus. Então é muito salutar testar seus próprios limites, sair da zona de conforto. Nada é mais decepcionante que um escritor que escreve sempre o mesmo livro, vez após outra. Mas isso, claro, é apenas a minha opinião.
ME: É importante que o escritor se “filie” à filosofia de um gênero?
FABIO SHIVA: Eu tendo a desconfiar de qualquer coisa que possa limitar minha liberdade criativa. Então meu primeiro impulso é responder que não, que o escritor não deve jamais se filiar a qualquer tipo de filosofia ou movimento. Contudo, percebo que essa é só a minha visão, e não uma verdade universal. Lembrei agora de uma analogia musical que talvez ajude a expressar o que penso a respeito. Assim como na literatura, na música também existem diversos gêneros. Vamos falar apenas do rock, que é um de meus gêneros musicais favoritos. Então, dentro do rock, você tem bandas como Ramones, AC/DC ou Iron Maiden, que meio que criam uma “fórmula” e passam suas carreiras inteiras sempre seguindo essa fórmula. E você tem bandas como Beatles e Pink Floyd, que estão sempre tentando se renovar, que a cada disco são diferentes do disco anterior, sem contudo perderem sua identidade. Seria um debate totalmente sem sentido tentar definir quem é melhor, Pink Floyd ou Ramones, por exemplo. Pois no fundo é apenas uma questão de gosto, de identificação pessoal, e até de momento. Eu, pessoalmente, considero a literatura uma forma preciosa de expressar a liberdade, então naturalmente não me interesso por filiações ou compromissos com o que quer que seja.
ME: Quais adjetivos são necessários para quem quer ser bem sucedido como escritor?
FABIO SHIVA: Muitos manuais de escrita diriam que em primeiro lugar é necessário cortar os adjetivos! O que mostra como tudo é relativo em matéria de escrita, pois de cara já me lembro de dois escritores tão díspares como Lovecraft e Chico Xavier, que mandam muito bem usando e abusando dos adjetivos.
Por outro lado, o que significa ser bem sucedido como escritor? Vender zilhões de exemplares? Escrever uma obra imorredoura? Mudar o mundo com seus escritos? Vou considerar uma concepção pessoal e mais básica de ser bem sucedido como escritor: conseguir escrever algo que lhe satisfaça, que lhe dê a sensação de dever cumprido. Nesse sentido, o único adjetivo que me ocorre é “persistente”. É preciso ter muita persistência para se tornar um escritor, não desistir facilmente, tentar de novo e de novo, não se abater com os fracassos, insistir até alcançar. O escritor é uma criatura muito resistente a frustrações.
ME: Há alguma espécie de prática, de ritual, que seja comum aos escritores?
FABIO SHIVA: Acho que não. Até algum tempo atrás eu considerava a frase do Sinclair Lewis como o único verdadeiro método universal: “Escrever é a arte de sentar o traseiro em uma cadeira.” Mas nem mesmo esse ritual básico é seguido por todos: depois soube que Pessoa, Hemingway, Nabokov e vários outros tinham o hábito de escrever em pé. Considero o ritual importante, não pelo ritual em si, mas como uma prática rotineira que ajuda você a entrar no estado mental mais propício à escrita. É uma maneira de entrar no clima. Mas não é bom cair no exagero, ficar tão dependente do ritual a ponto de não conseguir escrever se não seguir passo a passo aquela rotina específica. Eu gosto de adotar os rituais que me impulsionam a produzir mais. Por exemplo: percebi que vou mais rápido se escrever à mão. Quando escrevo diretamente no computador, a facilidade de reescrever a qualquer momento, só na base do “ctrl z, ctrl x, ctrl v”, acaba me deixando muito consciente da possibilidade de revisão de cada trecho escrito, o que torna o processo muito penoso e lento. Quando escrevo em um caderno, não tenho como dar “ctrl z”, então o jeito é seguir em frente. E uma vantagem a mais desse ritual é que quando vou digitar o que escrevi aproveito para fazer logo uma primeira revisão, então de modo geral sinto que produzo mais e melhor com esse ritual. O que não me impede de digitar diretamente no computador, em caso de necessidade. O ritual não pode virar uma superstição.
ME: Só pode ser bom escritor quem já nasceu gostando de escrever?
FABIO SHIVA: Espero que não, pois eu mesmo acho muito penoso escrever! Admiro muito quem estabelece uma relação prazerosa com a escrita. Meu processo, infelizmente, passa mais pela dor. Gosto de ter escrito, fico feliz quando consigo produzir bastante. Mas escrever, em si, é um ato que sempre me evoca um esforço físico, como tentar levantar um peso no limite de suas forças ou correr até não conseguir mais respirar. Na verdade, minha principal motivação é que me sinto péssimo se fico um dia sem escrever, me sinto fracassado, desperdiçando tempo vital. Escrever para mim é como um vício prolongado em alguma droga pesada: já não se trata de sentir prazer, mas de evitar a crise de abstinência.
Colocado assim, fica parecendo que escrever é um ato de supremo masoquismo. É que está faltando, ao menos no meu caso, o outro lado da moeda, que é ler. Meu desejo de ser escritor nasceu diretamente de minha paixão pela leitura. Escrevo porque sinto uma necessidade visceral de ler histórias que só eu poderia escrever, não por serem melhores ou mais elaboradas, mas por trazerem embutidas o meu dna, minha essência, minha alma. Pois ao ler o que escrevo, compreendo um pouco mais. Escrever, portanto, é o preço a pagar para poder ler o que se escreveu.
ME: O que você tem a dizer sobre título?
FABIO SHIVA: Um bom título vale ouro. Dificilmente alguém se dispõe a ler um livro cujo título não lhe agrada, a não ser que seja por obrigação, para fazer uma prova ou algo assim. Para mim um bom título precisa ter um ritmo interno, como o verso de uma música. Por isso gosto de testar um título repetindo em voz alta, para sentir a cadência, a sonoridade, a força. Acho que a escolha do título está muito ligada à intuição, é uma parte do processo que tem mais a ver com a poesia que com a prosa.
ME: A inspiração pode ser fabricada?
FABIO SHIVA: Quando se trata de prosa, de escrever um romance ou mesmo um livro de contos, a resposta é definitivamente sim. Henfil tem uma frase genial a respeito: “a inspiração é um cachorro preto, um dobermann bem aí atrás de você”. Ou seja, a inspiração nasce da necessidade, da pressão, seja a pressão do prazo, seja a pressão financeira, seja a pressão existencial. A questão do prazo mesmo, para mim, é quase como uma religião. Considero uma obrigação sagrada entregar o meu texto no prazo que foi acordado. Porque se você não pensa dessa forma, sempre irão surgir dezenas de compromissos e desculpas para não escrever. Acho que o rito de passagem definitivo para um escritor é quando ele consegue estabelecer e cumprir sua meta de escrever regularmente, rotineiramente, estando ou não inspirado.
Já a poesia, ao menos no meu caso, é completamente diferente. Eu nunca me determino a escrever um poema, são os poemas que decidem chegar, quando e como eles bem entendem. Mas com a prosa não pode ser dessa forma. Você pode até conseguir terminar um livro escrevendo apenas quando se sentir inspirado, mas dificilmente isso lhe dará o direito de se considerar um escritor, alguém que fez da escrita a sua profissão. Parafraseando Edison, podemos dizer que escrever é 1% inspiração e 99% transpiração.
ME: Qual o valor da técnica para a criatividade?
FABIO SHIVA: A técnica e a criatividade são igualmente importantes, o ideal é que caminhem juntas, ajudando-se mutuamente. A técnica sem a criatividade é estéril. Por outro lado, a criatividade sozinha corre o risco de morrer na praia, de não alcançar o alvo. A técnica potencializa aquela ideia original, confere força e impacto àquela coisa interessante que se tem para dizer. A mais elevada forma de arte literária é expressar a Verdade por meio da Beleza, é dizer belamente algo de significativo. Ou seja, fazer a técnica servir à criatividade.
ME: Qual o seu conselho para quem quer se lançar no mercado como escritor, mas ainda não tem estabilidade financeira?
FABIO SHIVA: Se a sua meta maior como escritor é ganhar dinheiro, ficar rico, meu conselho é: vá fazer outra coisa. Experimente algo mais fácil, como ser político ou vender drogas, por exemplo. Em minha opinião não deveríamos fazer nada unicamente pelo dinheiro. O dinheiro deve ser uma consequência. Isso, volto a dizer, é unicamente a minha opinião. Há vários escritores que admiro e que tiveram como motivação principal ganhar dinheiro. Essa pode ser até uma boa motivação, no sentido de que vai lhe obrigar a escrever pensando em tocar o coração do maior número possível de pessoas. Mas principalmente nos dias de hoje, considero essa motivação pouco prática.
ME: Gostaria de deixar uma mensagem para quem pretende viver do que escreve?
FABIO SHIVA: Escreva apenas se for para viver do que escreve. Não só no sentido estrito de pagar suas contas com o que sai de sua pena, mas principalmente no sentido mais amplo, preconizado por Rilke, de que você morreria se não pudesse escrever. Escreva apenas se puder levar o lema “viver de escrever” até as últimas consequências.
Gratidão!
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